quarta-feira, novembro 13, 2013

Cap - 1 ~~~~ P - 4

Foi no domingo de Páscoa que se soube em Leiria, que o pároco da Sé, José Miguéis, tinha morrido de madrugada com uma apoplexia. O pároco era um homem sangüíneo e nutrido, que passava entre o clero diocesano pelo comilão dos comilões. Contavam-se histórias singulares da sua voracidade. O Carlos da Botica, que o detestava, costumava dizer, sempre que o via sair depois da sesta, com a face afogueada de sangue, muito enfartado. Lá vai a jibóia esmoer. Um dia estoura! Com efeito estourou, depois de uma ceia de peixe à hora em que defronte, na casa do doutor Godinho que fazia anos, se polcava com alarido. Ninguém o lamentou, e foi pouca gente ao seu enterro. Em geral não era estimado. Era um aldeão; tinha os modos e os pulsos de um cavador, a voz rouca, cabelos nos ouvidos, palavras muito rudes. Nunca fora querido das devotas; arrotava no confessionário, e, tendo vivido sempre em freguesias da aldeia ou da serra, não compreendia certas sensibilidades requintadas da devoção: perdera por isso, logo ao princípio, quase todas as confessadas, que tinham passado para o polido padre Gusmão, tão cheio de lábia! E quando as beatas, que lhe eram fiéis, lhe iam falar de escrúpulos de visões, José Miguéis escandalizava-as, rosnando. Ora histórias, santinha! Peça juízo a Deus! Mais miolo na bola! As exagerações dos jejuns sobretudo irritavam-no. Coma-lhe e beba-lhe, costumava gritar, coma-lhe e beba-lhe, criatura! Era miguelista e os partidos liberais, as suas opiniões, os seus jornais enchiam-no duma cólera irracionável. Cacete! cacete! exclamava, meneando o seu enorme guarda-sol vermelho. Nos últimos anos tomara hábitos sedentários, e vivia isolado com uma criada velha e um cão, o Joli. O seu único amigo era o chantre Valadares, que governava então o bispado, porque o senhor bispo D. Joaquim gemia, havia dois anos, o seu reumatismo, numa quinta do Alto Minho. O pároco tinha um grande respeito pelo chantre, homem seco, de grande nariz, muito curto de vista, admirador de Ovídio que falava fazendo sempre boquinhas, e com alusões mitológicas. O chantre estimava-o. Chamava-lhe Frei Hércules. Hércules pela força explicava sorrindo, Frei pela gula. No seu enterro ele mesmo lhe foi aspergir a cova, e como costumava oferecer-lhe todos os dias rapé da sua caixa de ouro, disse aos outros cônegos, baixinho, ao deixar-lhe cair sobre o caixão, segundo o ritual, o primeiro torrão de terra.

Sem comentários: