quinta-feira, novembro 21, 2013
C - 1 ~~~~ P - 5
É a última pitada que lhe dou!
Todo o cabido riu muito com esta graça do senhor governador do bispado; o
cônego Campos contou-o à noite ao chá em casa do deputado Novais; foi celebrada
com risos deleitados, todos exaltaram as virtudes do chantre, e afirmou-se com
respeito, que sua excelência tinha muita pilhéria!
Dias depois do enterro apareceu, errando pela Praça, o cão do pároco, o Joli.
A criada entrara com sezões no hospital; a casa fora fechada; o cão, abandonado,
gemia a sua fome pelos portais. Era um gozo pequeno, extremamente gordo, que
tinha vagas semelhanças com o pároco. Com o hábito das batinas, ávido dum dono,
apenas via um padre punha-se a segui-lo, ganindo baixo. Mas nenhum queria o
infeliz Joli; enxotavam-no com as ponteiras dos guarda-sóis; o cão, repelido como
um pretendente, toda a noite uivava pelas ruas. Uma manhã apareceu morto ao pé
da Misericórdia; a carroça do estrume levou-o e, como ninguém tomou a ver o
cão, na Praça, o pároco José Miguéis foi definitivamente esquecido.
Dois meses depois soube-se em Leiria que estava nomeado outro pároco.
Dizia-se que era um homem muito novo, saído apenas do seminário. O seu nome era
Amaro Vieira. Atribuía-se a sua escolha a influências políticas, e o jornal de Leiria, A Voz do Distrito, que estava na oposição, falou com amargura, citando o Gólgota, no
favoritismo da corte e na reação clerical. Alguns padres tinham-se escandalizado com
o artigo; conversou-se sobre isso, acremente, diante do senhor chantre.
Não, não, lá que há favor, há; e que o homem tem padrinhos, tem, disse
o chantre. A mim quem me escreveu para a confirmação foi o Brito Correia (Brito
Correia era então ministro da Justiça). Até me diz na carta que o pároco é um belo
rapagão. De sorte que, acrescentou sorrindo com satisfação, depois de Frei
Hércules vamos talvez ter Frei Apolo.
Em Leiria havia só uma pessoa que conhecia o pároco novo: era o cônego
Dias, que fora nos primeiros anos do seminário seu mestre de Moral. No seu tempo,
dizia o cônego, o pároco era um rapaz franzino, acanhado, cheio de espinhas
carnais...
Parece que o estou a ver com a batina muito coçada e cara de quem tem
lombrigas!... De resto bom rapaz! E espertote...
O cônego Dias era muito conhecido em Leiria. Ultimamente engordara, o
ventre saliente enchia-lhe a batina e a sua cabecinha grisalha, as olheiras papudas,
o beiço espesso faziam lembrar velhas anedotas de frades lascivos e glutões.
O tio Patrício, o Antigo, negociante da Praça, muito liberal e que quando
passava pelos padres rosnava como um velho cão de fila, dizia às vezes ao vê-lo
atravessar a Praça, pesado, ruminando a digestão, encostado ao guarda-chuva:
Que maroto! Parece mesmo D. João VI!
O cônego vivia só com uma irmã velha, a Sra. D. Josefa Dias, e uma criada,
que todos conheciam também em Leiria, sempre na rua, entrouxada num xale tingido
de negro, e arrastando pesadamente as suas chinelas de ourelo. O cônego Dias
passava por ser rico; trazia ao pé de Leiria propriedades arrendadas, dava jantares
com peru, e tinha reputação o seu vinho duque de 1815. Mas o fato saliente da sua
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vida, o fato comentado e murmurado, era a sua antiga amizade com a Sra.
Augusta Caminha, a quem chamavam a S. Joaneira, por ser natural de S. João da
Foz. A S. Joaneira morava na Rua da Misericórdia, e recebia hóspedes. Tinha uma
filha, a Ameliazinha, rapariga de vinte e três anos, bonita, forte, muito desejada.
quarta-feira, novembro 13, 2013
Cap - 1 ~~~~ P - 4
Foi no domingo de Páscoa que se soube em Leiria, que o pároco da Sé, José Miguéis, tinha morrido de madrugada com uma apoplexia. O pároco era um homem sangüíneo e nutrido, que passava entre o clero diocesano pelo comilão dos comilões. Contavam-se histórias singulares da sua voracidade. O Carlos da Botica, que o detestava, costumava dizer, sempre que o via sair depois da sesta, com a face afogueada de sangue, muito enfartado. Lá vai a jibóia esmoer. Um dia estoura! Com efeito estourou, depois de uma ceia de peixe à hora em que defronte, na casa do doutor Godinho que fazia anos, se polcava com alarido. Ninguém o lamentou, e foi pouca gente ao seu enterro. Em geral não era estimado. Era um aldeão; tinha os modos e os pulsos de um cavador, a voz rouca, cabelos nos ouvidos, palavras muito rudes. Nunca fora querido das devotas; arrotava no confessionário, e, tendo vivido sempre em freguesias da aldeia ou da serra, não compreendia certas sensibilidades requintadas da devoção: perdera por isso, logo ao princípio, quase todas as confessadas, que tinham passado para o polido padre Gusmão, tão cheio de lábia! E quando as beatas, que lhe eram fiéis, lhe iam falar de escrúpulos de visões, José Miguéis escandalizava-as, rosnando. Ora histórias, santinha! Peça juízo a Deus! Mais miolo na bola! As exagerações dos jejuns sobretudo irritavam-no. Coma-lhe e beba-lhe, costumava gritar, coma-lhe e beba-lhe, criatura! Era miguelista e os partidos liberais, as suas opiniões, os seus jornais enchiam-no duma cólera irracionável. Cacete! cacete! exclamava, meneando o seu enorme guarda-sol vermelho. Nos últimos anos tomara hábitos sedentários, e vivia isolado com uma criada velha e um cão, o Joli. O seu único amigo era o chantre Valadares, que governava então o bispado, porque o senhor bispo D. Joaquim gemia, havia dois anos, o seu reumatismo, numa quinta do Alto Minho. O pároco tinha um grande respeito pelo chantre, homem seco, de grande nariz, muito curto de vista, admirador de Ovídio que falava fazendo sempre boquinhas, e com alusões mitológicas. O chantre estimava-o. Chamava-lhe Frei Hércules. Hércules pela força explicava sorrindo, Frei pela gula. No seu enterro ele mesmo lhe foi aspergir a cova, e como costumava oferecer-lhe todos os dias rapé da sua caixa de ouro, disse aos outros cônegos, baixinho, ao deixar-lhe cair sobre o caixão, segundo o ritual, o primeiro torrão de terra.
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